Desmontar preconceitos

Leio num texto da Helena Matos que «o actual quadro legal quando uma criança fica orfã nada impede que um tribunal entregue a guarda dessa criança aos parceiros/cônjuges do seu pai/mãe adoptivos ou biológicos caso considere que essa opção é a melhor para a criança. E isto é válido para os homossexuais como para os heterossexuais. Mais, em 2009 o Tribunal de Oliveira de Azeméis entregou a guarda de duas meninas a um tio que vivia com outro homem pois a juíza entendeu que aquele casal homossexual reunia mais condições para tratar das crianças do que os pais». Logo, a proposta de lei do PS, que fora aprovada na generalidade em Maio de 2013, visa não esta entrega da criança aos cuidados do cônjuge da pai ou mãe biológica falecida (uma vez que esse direito da criança já existe e está assegurado), mas sim ao direito desse cônjuge se outorgar pai ou mãe da criança orfã. Trata-se de uma mudança na identidade da criança em favor de um reconhecimento legal concedido ao parceiro/cônjuge do falecido/a. Como chama atenção o João Miranda, no Blasfémias a co-adopção feita com a mãe ou pai biológico ainda vivos, poderá dar origem a situações bizarras, nomeadamente em caso de divórcio. De facto, estas foram as reservas que alguns deputados tiveram na altura, nomeadamente alguns que entendem que os casais do mesmo sexo poderão adoptar mas não concordavam com a proposta de coadopção apresentada pelo PS.

A proposta aprovada desceu para ser discutida na especialidade, resultando na polémica proposta de referendo do PSD. Os ilustres lembraram-se de juntar ao debate da coadopção a problemática da adopção por casais do mesmo sexo e levá-las juntas a referendo. Com a colagem a esta 'causa fracturante', procuram extremar posições e, eventualmente, manter o povo distraído do essencial. Mas lembro que o PS chamou este tema da coadopção, para ver se capitalizava mais votos junto dos partidários dessas mesmas 'causas fractuantes'. Se, como se diz no primeiro parágrafo deste texto, o direito das crianças orfãs está assegurado pela actual lei, qual seria o interesse real de levar este tema ao parlamento? Qual o interesse de alimentar estas 'fracturas' na sociedade, quando deveríamos estar à procura do que é melhor para as crianças institucionalizadas?

Em Maio, escrevi um texto, em que explicava a minha posição sobre a adopção por casais do mesmo sexo (Eu conservador me confesso). Resumidamente, 1) a premissa principal deste debate deverá ser 'a adopção é um direito da criança e deverá servir o melhor interesse da mesma'; 2) caso-a-caso, os técnicos têm que procurar a melhor família para a criança em concreto; 3) essa família pode ser branca, preta, amarela ou às pintas, homossexual ou heterosexual, com cão, gato ou piriquito, muito rica ou remediada, desde que seja a melhor família para aquela criança. Nesse sentido, sou favorável à retirada da alínea que exclui as famílias de casais do mesmo sexo da lista de potenciais candidatos da actual lei da adopção.

Depois de rever todos os estudos científicos realizados sobre a adopção em geral e a adopção por casais homossexuais (eles não usam o termo 'casais do mesmo sexo') em particular, a American Academy of Pediatrics emitiu um importante parecer sobre o tema. Os seus autores concluem que as crianças adoptadas por casais homossexuais têm uma resiliência que os permite serem saudáveis (social, psicologica e sexualmente), mesmo quando existem discrepâncias económicas e legais da forma como as suas famílias são tratadas e/ou quando são alvo de estigma social. Mais, os estudos mostram que o bem-estar das crianças é mais afectado pela relação com os pais, pela sensação de competência e segurança dos mesmos e apoio económico e social à família que o sexo ou orientação sexual dos seus pais.

Antes de me debruçar atentamente sobre o tema, admito que a adopção por casais do mesmo sexo me fazia confusão. É normal, porque não somos imunes aos estigmas e preconceitos do meio em que crescemos. Mas cabe-nos a nós desmontar os preconceitos que são negativos, para nós e para os outros.

[fonte: vulture.com]

Nota final: Ainda sobre os preconceitos, o Henrique Raposo escreveu (e bem) isto: «as pessoas que se queixam da forma caricatural como os média retratam padres e cristãos são as mesmas pessoas que promovem uma visão caricatural e agressiva do gay. Se o padre é retratado como um Amaro perpétuo, o gay é desenhado como uma bichona irresponsável e, por isso, incapaz de ter uma família. Além de ser irresponsável, esta bichona é vista como uma entidade perversa, sexualmente perversa. A homossexualidade surge assim como uma perversão semelhante à pedofilia. Aliás, gay e pedófilo são sinónimos nesta visão das coisas. Ora, é esta equivalência moral que explica a recusa militante da coadopção ou adopção de crianças por homossexuais: em muitas cabeças, um gay a entrar num lar de crianças para adopção só pode ser uma imagem sexual, a raposa a entrar no galinheiro. Estas cabeças estão erradas. Tal como o celibato dos padres, a homossexualidade não é uma perversão sexual e não provoca pedofilia».

Etiquetas: , ,